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esforço intersetorial é fundamental para abordar acolhimento institucional de crianças e adolescentes

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Entender todas as variáveis que envolvem a temática do acolhimento e desacolhimento institucional de crianças e adolescentes no Brasil está longe de ser uma tarefa fácil.


Como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é preciso olhar esses sujeitos em todas as suas dimensões (intelectual, física, afetiva, social, cultural, etc.). Portanto, é fundamental pensar no acesso à saúde e à educação de qualidade, oferta de uma alimentação balanceada, direito ao lazer, à cultura e aos esportes, respeito às individualidades, entre inúmeras outras questões.


Mas, afinal, qual é a atual situação dos Serviços de Acolhimento no Brasil? Eles respondem a todos esses aspectos, além de preparar os(as) adolescentes para o desacolhimento? Quais desafios os(as) adolescentes enfrentam quando completam 18 anos e precisam sair dos Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICAs)? Qual é o papel da família, da sociedade e do Estado na garantia e no zelo pelos direitos de crianças e adolescentes?


Para refletir e debater a respeito, a Fundação Projeto Travessia conversou com a especialista na área da infância e adolescência Dayse Cesar Franco Bernardi, psicóloga, pesquisadora e formadora na área dos direitos protetivos de crianças e adolescentes pela Associação de Pesquisadores e Formadores da Área da Criança e do Adolescente (NECA), conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e membro do Grupo Gestor do Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária. Confira a seguir.

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Fundação Projeto Travessia: Qual é o cenário atual das políticas públicas de acolhimento de crianças e adolescentes no Brasil? Quais têm sido os principais avanços e os desafios ainda
evidentes?
Dayse Bernardi:
Apesar de o relatório institucional Situação das Políticas Públicas de Proteção Especial para Crianças e Adolescentes no Brasil, lançado em maio de 2021 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ter mostrado que os Serviços de Acolhimento avançaram no seu reordenamento, ainda temos uma quantidade considerável de acolhimentos sendo realizados em função da pobreza, que, muitas vezes, é atravessada por outras formas de desigualdades, como as de classe, de gênero e de etnia. Além disso, mantemos um quadro de acolhimentos de crianças de determinadas famílias que acabam sendo justificados pelo termo genérico “negligência”. Ela ocorre quando a criança ou o(a) adolescente não é efetivamente cuidado(a), mesmo existindo condições para tal. Isso significa que existe intencionalidade. Só que, excetuando-se casos que de fato possam ter indicadores críveis da negligência, observamos que a grande maioria acaba sendo acolhida pelas condições de pobreza que se manifestam por muitas formas, como o adoecimento psíquico, o uso de substâncias psicoativas pelos pais, a falta de habitação, de emprego e de estabilidade.


FPT: O maior índice de acolhimento em razão da pobreza é justamente o que mostra o levantamento Os Abrigos para Crianças e Adolescentes e o Direito à Convivência Familiar e Comunitária, lançado pelo Ipea, em 2005, que também apontou a pobreza como a principal dificuldade para o retorno das crianças e adolescentes acolhidos. Essa situação se mantém?
Dayse:
A Nota Técnica 91, de janeiro de 2021, que atualizou os dados da pesquisa de 2005, mostra que essa situação se mantém e que há, inclusive, a tentativa de um debate nacional sobre uma medida preventiva ao acolhimento e incentivo ao retorno seguro à família de origem, que é a guarda subsidiada para a família extensa [aquela que vai além dos pais, formada por parentes próximos com os quais a criança ou o(a) adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade].


A medida, que está prevista no ECA, mas não é tipificada, tem algumas experiências exitosas que mostram que, com uma ajuda econômica aliada ao acompanhamento e orientação, há uma possibilidade de retorno seguro da criança ou do(a) adolescente acolhido(a) para a família extensa. Muitas vezes, existe um vínculo afetivo e identidade familiar, mas os parentes não têm recursos para receber uma, duas ou três pessoas a mais.

FPT: Você avalia, então, que é importante manter esses vínculos?
Dayse:
É importante – e um desafio – manter os vínculos afetivos nutridos com as pessoas com as quais a criança ou o(a) adolescente tenha identificação, o que se aplica não só à família natural, mas também à família extensa, porque isso facilita a possibilidade de retorno. Por outro lado, se for mantido um regime de visitas fechado, uma vez por semana, restrito só ao pai e à mãe, a relação daquela criança com seus tios, padrinhos, vizinhos e amigos se esvai. Precisamos ampliar a conceituação do que é o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. É nos laços comunitários que é possível trabalhar, por exemplo, a autoestima dos(as) adolescentes. Ou seja, a partir da recuperação do pertencimento a grupos entre semelhantes, como ensinar o(a) adolescente a gostar de si mesmo.

 

FPT: De que forma a institucionalização e a desinstitucionalização
de crianças e adolescentes são abordadas em normativas como o ECA?
Dayse:
Existem algumas medidas de proteção anteriores ao acolhimento que poderiam ser aplicadas a partir de uma rede intersetorial para garantir o acesso aos direitos fundamentais desse
público. O ECA é muito claro ao afirmar que medidas de acolhimento, seja familiar ou institucional, são excepcionais, somente para casos em que a criança ou o(a) adolescente está correndo risco de vida, física e psiquicamente. Quando vamos analisar os motivos de acolhimento, percebemos que eles se prendem só à família, mas temos mais dois entes responsáveis
pelas crianças e adolescentes: a sociedade e o Estado. A violência estrutural de Estado não é computada como motivo de acolhimento.

FPT: E como você avalia que a sociedade falha na proteção e garantia de direitos das crianças e adolescentes?
Dayse:
Temos uma sociedade muito negligente, pois o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), por exemplo, deveria desenhar a política de atendimento, mas precisa ser nutrido por informações organizadas a partir do diagnóstico do município, como análise do direito à convivência familiar e comunitária e à proteção integral. Todas essas informações passam necessariamente pelos conselhos tutelares, cujo sistema de dados, o Sistema de Informação para Infância e Adolescência
(SIPIA), deveria fornecer um retrato sobre quando o conselho tutelar é acionado ou precisa tomar uma ação para evitar acolhimentos. O que ocorre hoje é que esse estudo para poder mostrar o quanto, de fato, há uma violação de direito, não é feito, porque a Lei 12.1000, de 2009, torna tudo isso um processo judicial contencioso, no qual a família pode se defender do que está sendo acusada. O caso, portanto, só chega à equipe técnica do poder judiciário depois da medida aplicada, e não antes.

 

Então, a equipe que antes fazia um estudo técnico para indicar se a medida deveria ser de acolhimento ou não, não o faz mais por acreditar que ele deveria ser realizado pelo CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], que, por sua vez, não o realiza por entender que é uma judicialização de sua ação. Teoricamente, se todas as medidas anteriores ao acolhimento fossem aplicadas, a família já deveria estar no CREAS, que é o lugar que trabalha vínculos já rompidos ou em vias de. Isso acaba não acontecendo. Assim, muitas vezes, o acolhimento é feito a partir do julgamento do conselho tutelar, e não do poder judiciário.

FPT: Quais são os aprimoramentos necessários quando falamos em dados e informações sobre acolhimento e desacolhimento no Brasil?
Dayse:
Precisamos ter um registro dos acolhimentos que se repetem, ou seja, há um processo de desacolhimento e, posteriormente, novo acolhimento da mesma criança. Além disso, existe uma grande solicitação da sociedade civil, inclusive do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), para que o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento passe a registrar os casos de adoção mal-sucedida, já que há muitas devoluções das crianças adotadas, o que não é feito, pois, do ponto de vista legal, é um novo abandono. E também os casos de retorno à família de origem que não deram certo, para os quais geralmente observamos que não houve acompanhamento. É como se considerássemos que, uma vez que a criança ou o(a) adolescente volta para a família está tudo resolvido, e não está. Há todo um processo de readaptação, de elaboração psíquica, inclusive, porque, em muitos casos, a família foi acusada de negligente, mas a criança não sentia isso. E quando volta para casa, pensa que aí sim os pais foram violentos e negligentes por terem permitido que ficasse fora de casa durante tanto tempo. São muitas as questões a serem acompanhadas e, por isso, falo sobre a importância de um serviço de saúde mental muito conectado à realidade de crianças e adolescentes em acolhimento.

 

FPT: E quanto à preparação do(a) adolescente para sair do acolhimento ao completar 18 anos? Como a questão da autonomia se relaciona a tudo isso? É um tema que deve ser cuidado pelos Serviços de Acolhimento?
Dayse:
Os Serviços de Acolhimento teriam que trabalhar a possibilidade da autonomia desde a hora que a criança entra no Serviço, até o momento que sai. Como vou esperar que um(a) jovem seja autônomo(a) e capaz de se colocar livremente na vida se, durante todo o tempo, ele(a) foi “preso(a)” sem poder sair sozinho(a), receber ou visitar um amigo ou ir a festas? A autonomia
deve ser abordada como um conceito ampliado, de se sentir mais seguro(a) diante dos desafios da vida. É necessário pensar na dignidade e integridade dessas pessoas, que não se reduzem a aprender um trabalho e se manter economicamente. Então, como o Serviço de Acolhimento aborda o pertencimento dessa pessoa que é um(a) cidadão(ã) do município? Ele(a) já foi a um cinema ou teatro? Conhece o parque perto do acolhimento? Sabe sobre as escolas de dança, luta, natação? Que acesso ele(a) tem à cultura e ao esporte, que também são direitos fundamentais?

FPT: Quais os desafios enfrentados pelos(as) adolescentes que se veem no momento de serem desligados(as) do acolhimento?
Dayse:
Os(as) jovens não têm esse acompanhamento pós-saída do Serviço de Acolhimento quando a grande maioria atinge a maioridade e volta para a família. Quando não tem essa família, vai para a rua porque sai despreparado(a), não só do ponto de vista de ter um trabalho, mas também por não ter tido a oportunidade de desenvolver seus talentos. Muitas vezes, a sociedade capitalista pensa que a única maneira de se tornar um adulto é trabalhar. Só que, para tal, ele(a) precisa do autoconceito, aptidões e habilidades desenvolvidas, além de saber fazer escolhas, usar o dinheiro e se colocar em relações sociais. Saber administrar, seja o dinheiro, o tempo ou a casa, também é um processo de aprendizagem
necessário. Ele(a) morava em um lugar coletivo, onde tinha tudo pronto. O(a) jovem precisa ter uma ajuda econômica até que possa se desenvolver em um emprego e continuar estudando algo que goste, que tenha relação com seu potencial e que seja viável. Com isso, trabalha-se o conceito não só de sobrevivência, mas de uma vivência que seja boa, o que não significa necessariamente ter muito dinheiro, mas saber viver dentro da sua possibilidade econômica. Ou seja, evitar o uso do dinheiro de maneira impulsiva, mas também não seguir o outro lado, no qual o pensamento “sou pobre, não mereço nada, então não posso
gastar”, resulta em um comportamento de poupar ao máximo e viver situações de penúria, como se as descobertas da vida e o prazer fossem proibidos. É necessário mostrar o emprego como condição de vida, e não a vida para o trabalho, já que muitos podem pensar que “só serão alguém” se trabalharem muito.

FPT: Quais impactos essa mudança tem no processo de desenvolvimento dos(as) adolescentes?
Dayse:
São muitos. Eu diria que o primeiro deles é separar-se das pessoas com as quais o(a) jovem criou relações de referência e confiança. Ou seja, que depois dessa saída do Serviço, o(a) jovem possa retornar para rever e conversar com os(as) educadores(as), com o(a) psicólogo(a), com o(a) assistente social e com os(as) colegas que lá continuam. Outro ponto é justamente como e onde os(as) jovens, que saíram do acolhimento, se reúnem. Experiências fora do Brasil mostram associações de ex-acolhidos(as), além de fundações e programas do governo que proveem apoio a esses grupos por se preocuparem com a questão emocional e do pertencimento, reforçando que não estão sozinhos(as) e que mais pessoas viveram a mesma experiência. Que eles(as) possam ter espaço para se encontrar, fazer um churrasco, cantar, compor. São coisas que mantêm a afetividade. Também é necessário que os Serviços de Acolhimento trabalhem o tema da sexualidade. Do ponto de vista psíquico, muitos(as) adolescentes se sentem adultos(as) quando se tornam pais ou mães, com o desejo de ser a família que não tiveram. Assim, se isso não é trabalhado pelo Serviço ou na escola, haverá reprodução de um ciclo que é de violência, eu diria, com a maternidade e paternidade precoces. Crianças e jovens precisam ser orientados no sentido de entender que o prazer e a sexualidade fazem parte da vida, mas que devem viver isso com responsabilidade. O uso de drogas e substâncias psicoativas também é um grande desafio, já que, no momento que esse(a) jovem sair do Serviço de Acolhimento e buscar seus pares, irá encontrar muitos usando drogas. Não significa que todos(as) que estão na rua estão fazendo uso de substâncias, mas fazê-lo facilita muito pertencer e permanecer no mundo da rua, que é onde eles(as) vivem o máximo da liberdade e da violência e, depois, fica muito difícil seguir regras novamente.


FPT: Quais são os avanços e os desafios na implementação de uma política pública efetiva voltada para os(as) adolescentes que estão no processo de desacolhimento?
Dayse:
Não devemos reduzir tudo ao Serviço de Acolhimento, que faz parte de uma rede. Portanto, acredito na necessidade de uma ação intersetorial e articulada com a sociedade civil. Hoje existe uma fragmentação da política, e é como se tudo ficasse reduzido à assistência social. É um grande desafio quando o(a) jovem sai
do sistema de proteção e não tem mais ninguém pensando nele(a). O(a) jovem deveria ter todo um arcabouço de aluguel, estudo, um recurso que desse para viver de uma forma digna e acompanhamento durante um tempo. Não chamaria de tutor(a), mas talvez um orientador(a), que acompanhe e tenha afeto por esse(a) jovem. Em outros países, como Portugal, esse acompanhamento vai até os 24 anos. Temos que mudar essa cultura de que aos 18 anos você está pronto(a), além de incentivar mais o senso de comunidade. Ou seja, o desafio para as políticas públicas é mudar o pensamento reduzido a só um tipo de família. É possível se reconhecer na família dos iguais, por exemplo. A questão orçamentária é outro ponto e, também, deve-se olhar não só para crianças, mas para as juventudes. É muito importante promover esse diálogo entre o ECA e o Estatuto da Juventude, para assegurar direitos aos(às) jovens.

FPT: Como você avalia a importância da atuação de organizações da sociedade civil nessa causa no Brasil? Qual a relevância de iniciativas como o “Projeto Caminhos para a Autonomia” para os(as) adolescentes que estão em fase de desacolhimento?
Dayse:
Acho fundamental pensarmos nessa relação que o ECA já estabelece de uma política que precisa ser feita de forma articulada entre governo e sociedade civil, o que eu acredito que deve ocorrer nos conselhos paritários, como o Conanda, os conselhos municipais e estaduais, que hoje estão muito esvaziados. São espaços para pensar política no município e analisar quantos projetos e propostas devem ser desenvolvidos por organizações da sociedade civil, em parceria com o Estado, para se tornar política pública. Trata-se de aprender e valorizar a experiência acumulada com tudo o que já foi e está sendo realizado no país. Acho que, mais do que nunca, a sociedade civil precisa estar junto com o Estado, em uma relação não de oposição, mas de complementaridade. É importante que a sociedade tome conhecimento de iniciativas como o projeto da Fundação Travessia, pois muitas podem, depois de uma análise de impacto, realmente se tornar política pública a partir de propostas efetivas.

FPT: Trata-se de um assunto complexo, com questões muito desafiadoras. Qual mensagem fica para quem atua nesse campo?
Dayse:
Gostaria de encerrar com o conceito de esperançar, trazido pelo educador Paulo Freire. Quando fazemos um diagnóstico da realidade e do contexto desse tema, não é para desanimarmos. Pelo contrário. Devemos arregaçar as mangas, conhecer os buracos e promover pontes.

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